Contratos futuros de água, o novo petróleo?

No filme O Livro do Eli, interpretado por Denzel Washington, observamos um mundo devastado pela guerra, onde as pessoas tentam sobreviver de qualquer forma. Um dos grandes enfoques do filme diz respeito a água, ou melhor, a falta dela, onde apenas as pessoas com mais influência podem tê-la.  

Não muito distante da nossa realidade, em meados de 1600, Thomas Fuller, historiador e religioso britânico, já dizia que só percebemos o valor da água depois que a fonte seca. Quatro séculos e duas décadas passaram e percebemos que esta ideia nunca fez tanto sentido para a realidade que nos encontramos. 

A Terra dispõe de aproximadamente 1,39 bilhão de quilômetros cúbicos de água. No entanto, 97,2% dela está nos mares, é salgada e não pode ser aproveitada para consumo humano. Nos restam apenas 2,8% de água doce, onde dois terços encontram-se armazenadas em geleiras, o que inviabiliza seu uso. Por fim, temos menos de 0,4% da água existente disponível em nosso planeta, que possa atender às nossas necessidades. E a demanda não para de crescer.

Prova da escassez desse recurso natural foi evidenciada com a chegada da pandemia do coronavírus, segundo levantamento da revista Águas do Brasil, 40% da humanidade não pode lavar as mãos para impedir a propagação de doenças e nos países em desenvolvimento, 75% das famílias ainda não têm acesso à água potável para lavar as mãos adequadamente.

Mais necessária, mais escassa

Atualmente, grande parte da utilização dos recursos hídricos pode ser dividida em quatro modalidades, sendo na agricultura, na produção energética, na atividade industrial e no abastecimento humano. 

O crescimento constante da população mundial exige mais alimentos e energia elétrica. De acordo com as Nações Unidas (ONU), atualmente 2 bilhões de pessoas vivem em países com sérios problemas de acesso à água, além disso, a ONU prevê que, em 2030, a sociedade irá necessitar 40% a mais de água, o que pode colocar em risco possíveis fontes hídricas do planeta, ocasionando conflitos econômicos e políticos pela disputa do recurso em diversos países. 

O mercado antecipa tudo

Quando se trata de investir, a lei da oferta e demanda é sempre levada a sério pelo mercado, tendo em vista que ela é uma das maiores geradoras de oportunidades para o investidor. 

É justamente por essa percepção do mercado, de uma possível escassez do recurso natural mais importante do planeta, que a água se juntou ao ouro, prata, petróleo e demais commodities, sendo negociada em contratos futuros na bolsa americana Nasdaq no início de dezembro. Os contratos terão por base o Nasdaq Veles Califórnia Water Index (NQH20), criado pelas empresas Veles Water e WestWater Research em parceria com a Nasdaq, sendo baseado no preço médio das cinco principais bacias hidrográficas da Califórnia. 

Todavia, quem realiza este tipo de investimento não recebe o recurso físico, mas uma garantia de posse em certo volume do recurso. Cada contrato futuro representa 3,26 milhões de galões ou 10 acres-pés de água (12,3 milhões de litros).

Já em seu primeiro pregão, realizado no dia 7 de dezembro de 2020, foram transacionados dois contratos, a US$ 4.960 cada. 

Um pouco sobre contratos futuros

Para aqueles que desconhecem essa modalidade de investimento a explicação é bem simples. Os contratos futuros servem como uma garantia contra as oscilações nos preços através da oferta e demanda. 

Sendo assim, o mercado futuro funciona como um “contrato de intenção de compra e venda”. Ou seja, o vendedor e o comprador combinam um preço hoje para entrega e pagamento em uma data futura.

Dessa forma o vendedor consegue fixar o preço e diminui seus riscos, caso aconteça oscilações no período e o comprador tem a chance de valorização, caso este venha a subir.

Se na data de liquidação, o preço estiver abaixo do combinado, o vendedor recebe a diferença, se estiver acima é o comprador que irá receber.

Para o bem e para o mal 

A notícia foi literalmente um “divisor de águas”. Para os apoiadores, a comoditização da água permitirá que produtores agrícolas e comerciantes possam realizar hedge sobre a disponibilidade futura do recurso, com a gestão dos riscos associados à escassez. Com isso seria possível alinhar de maneira mais eficiente a oferta e demanda.

Ou seja, fazendeiros e concessionárias de energia elétrica, poderiam se proteger da flutuação do preço, além de medir sua disponibilidade no mercado. No que compete aos investidores, estes poderiam ir contra ou a favor da volatilidade, em busca de lucros.

Para os críticos, a água é um direito humano essencial para a vida e pertence a todos como um bem público, não podendo ser utilizada apenas como mercadoria.  Para eles, a visão do recurso como mercadoria poderia ser utilizada como argumento de políticos e empresas para justificar aumento de preços em todo o planeta e restrição do recurso às pessoas, retirando um direito primordial para o ser humano.

Além disso, a preocupação é que, a comercialização de contratos futuros de água, possa abrir brecha para uma monopolização do mercado, através do agronegócio e da indústria, vistos como os grandes players do mercado, impactando setores mais vulneráveis da sociedade e da economia.

O Brasil poderia aproveitar este momento?

O Brasil é o maior detentor de água doce de superfície do mundo, com cerca de 12% do total. Tendo a China e os Estados Unidos como os principais consumidores mundiais de água.

Caso os contratos futuros de água fossem negociados em nosso país, poderíamos especular que haveria alta demanda dos investidores estrangeiros? É importante frisar que o ano de 2020 foi um ótimo ano para os commodities, a busca por ativos reais em função de maiores estímulos fiscais e monetários no mundo foi a base para a sua valorização, que impulsionaram o mercado após as grandes quedas ocorridas pelo “Corona Day“. CSN, Gerdau, Metalúrgica Gerdau, Usiminas, Vale, Bradespar, Petrobras e PetroRio são grandes exemplos, chegando a alta de 42% desde o início de novembro. 

Seria a água a nova soja, como produto de maior valor na comercialização brasileira?

Conclusão 

No momento, a compra e venda dos contratos futuros de água acontecem apenas nos EUA, todavia a ideia pode servir de exemplo para outros mercados, tendo em visto que a escassez hídrica é um problema global, estimulando outras bolsas de valores a fazer o mesmo. 

Para que a negociação do ativo seja livremente estendida a todo o mundo, iria necessitar de aprovações regulatórias em cada país. Muito embora, o sucesso efetivo do derivativo e a efetividade do sinal de preço vai depender da adesão e da liquidez, o que não deve faltar para o ativo em questão.

Brincadeiras à parte, mais do que a atenção contínua, a principal conclusão é que não existem somente fatos concretos no preço. Uma boa parte do que está na tela do seu home broker são expectativas criadas pelo mercado. No fim das contas, ao escolher seus investimentos, você deve priorizar aquelas que te darão o maior número de oportunidades.

É importante salientar que como quaisquer ativos, os contratos futuros de água necessitam ser avaliados pelo investidor, devendo ter olhos de  águia, e levar em conta o potencial de investimento, a evolução do commodity, suas limitações, seu preço e seus riscos. 

Apesar de a oferta de água ser promissora como modalidade de investimento, tendo em vista demanda urgente em escala global, creio que ainda seja cedo para avaliarmos a efetividade do negócio, tendo em vista que se trata de um nicho de mercado ainda muito pequeno, sem um histórico de preços formado e sem uma efetiva robustez, na qual possamos analisar todas as características que definem seu mercado, como forma de auferir possíveis resultados.

Podemos identificar boas oportunidades de investimentos? Sim e não. O futuro nos dirá, até lá muita água vai rolar.

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